quarta-feira

Ressaca


Caminhava há horas.

 Não tinha destino nem motivo para estar naquela caminhada, no entanto continuava a andar. Era um dia nublado igual muitos outros, ventava e sentia arrepiar-se a cada uivo do vento. Sentiu o asfalto áspero raspar nas ranhuras da palma do pé; sentiu os pedregulhos se alojarem por entre os dedos; sentiu a grama roçar em seu calcanhar; e por fim sentiu a areia. 

Chegara à praia.

Era uma quarta feira qualquer de Outubro, a quarta feira mais nublada de todas as quartas feiras. Continuou a caminhar pela praia, desta vez o uivo do vento tinha companhia do barulho do mar que o acompanhavam pelo trajeto sem final aparente. Por fim, parou e sentou num monte seco de areia para poder observar o mar.

A linha do horizonte confundia-se com o céu nublado e o mar acinzentado. Olhava o mar e afogava-se nos próprios pensamentos; sufocava-se com a tristeza que carregara até àquela praia. Observava o mar que mostrava-se revolto, como de ressaca, lugar onde ninguém desejaria estar ou sequer suportar, exceto ele. Encontrava-se sozinho e perdia-se nos pensamentos. Um misto de culpa e arrependimento misturava-se a cada onda que o mar lançava à praia e que depois recolhia para lançar novamente outra onda e outra e outra. Despejou através das lágrimas tudo o que o oprimia nas ondas que o mar fazia questão de recolher. Sofria calado, olhando à sua volta, mas não encontrava ninguém.

Por fim esvaiu-se de todos os pensamentos e ficou durante horas observando o mar que se aproximava cada vez mais até finalmente tocar seus pés. Mar acinzentado, revolto e ao mesmo tempo tão belo. 

Percebeu que olhava para dentro de si mesmo; afogava-se no mar de tristezas que carregava dentro do peito. 


Sentia-se sozinho e estava com frio.

sábado

Soneto 116 - William Shakespeare

Dentre tantas tentativas de explicação do famigerado amor, tão desgastado pela mídia e tão exaltado pelos poetas, somente esta realmente me convenceu:

De almas sinceras à união sincera
Nada há que impeça.


Amor não é amor
Se quando encontra obstáculos se altera,
Ou se vacila ao mínimo temor.

Amor é um marco eterno, dominante,
Que encara a tempestade com bravura;
É astro que norteia a vela errante,
Cujo valor se ignora, lá na altura.

Amor não teme o tempo, muito embora
Seu alfanje não poupe a mocidade;
Amor não se transforma de hora em hora,
Antes se afirma para a eternidade.

Se isso é falso, e que é falso alguém provou,
Eu não sou poeta, e ninguém nunca amou.

quarta-feira

Devaneio

Ela, olhou para ele; ele, retribuiu o olhar, recebendo um sorriso em troca.

Ele não sabia onde estava, o que estava fazendo, ou sequer quem era ela, mas se sentia tão bem como nunca se sentira antes. Começou a observar o local onde estavam, não conhecia as pessoas ao seu redor, mas aquela garota de pele branca e cabelos pretos ainda olhava para ele.

Ela começou a dizer algumas palavras, mas ele não prestava atenção nelas, mas na garota que as dizia. Aqueles olhos castanho-escuros se enchiam de um brilho inenarrável enquanto ela falava, como se fosse uma boa notícia que estava a dizer. Ele não prestou atenção em uma palavra sequer que ela disse, passou o tempo todo a observar o quão gracioso era o jeito com que ela conversava com ele. Quando ela finalmente terminou de falar, era a vez dele. 

“Desculpe-me, você estava falando comigo?” – Ele perguntou
“Sim, estava...” – Respondeu a garota com um olhar triste

Ele, então, sorriu e retirou com as pontas dos dedos alguns fios de cabelo que insistiam em ficar no rosto da garota. Não queria que nada atrapalhasse a sua visão daquele rosto tão belo. Como resposta, ela lhe deu um abraço forte, como se tivesse reencontrado alguém que há muito tempo havia perdido e que agora não queria mais se separar. Ele nunca havia experimentado um abraço como aquele; desejou que nunca terminasse.

Quando enfim o abraço terminou, ele colocou a mão no rosto dela e a beijou de forma suave e sem pressa, como se tivessem toda a eternidade para aquele beijo. E então descobriu ter encontrado alguém que há muito havia perdido, alguém que conhecia tão bem que as palavras não se faziam necessárias, pois se comunicavam apenas com olhares e sorrisos. 

Acordou com o barulho do despertador programado para as 10 horas da manhã daquele feriado. Ao abrir os olhos, percebeu que estava em seu quarto, e que tudo não passara de um sonho, infelizmente...

Há quem diga que sonhos são a presságios do futuro, outros dizem que são estímulos do subconsciente, ou então que não significam nada. Ele acreditava que esse sonho não significava nada, mas tinha torcia para que fosse um presságio do dia que encontrará a garota que deseja e ama em seu subconsciente.

Lúrpio

Ela acabara de se declarar.

Dissera que o achava atraente, mas que só depois que o conheceu é que começou a gostar dele, definia-o como “legal e engraçado”. Envergonhada, disse que queria ficar com ele, no entanto o pobre rapaz não acreditava no que ouvia.

Ele, não sabia o que dizer; ela, ansiava por uma resposta.

Tentou dizer qualquer bobagem para desviar o assunto, mas foi em vão. Ela estava determinada a ter uma resposta naquele momento, parecia não poder esperar. Pensou em dar uma resposta qualquer, que gostaria de pensar melhor, de ter tempo para decidir, mas a decisão já estava tomada. Ele ainda sonhava com aquela que se foi, e que com ela levou parte dele; quiçá a melhor parte. Achou injusto ficar com ela naquelas condições, estar com ela pensando em outra. Ele sempre achou um refúgio das decisões que precisava que tomar no imperativo categório de Immanuel Kant: “Age como se a máxima de tua ação devesse tornar-se, por tua vontade, lei universal da natureza”.

Ou seja, ficar com ela ia de encontro a tudo o que acreditava em ser honesto com os próprios sentimentos e com aos da pessoa alheia. Mas ao mesmo tempo não queria que ela se sentisse magoada ou rejeitada. Acabou por não fazer nada, como de costume.

Certa noite pegou-se pensando nesse episódio e no porquê da reação que teve. Acreditava que era medo; medo de arriscar; medo das incertezas; medo de se entregar. Repetia para si mesmo que era necessário mudar e esquecer o passado, mas isso era mais difícil de ser feito do que falado.

Antes de adormecer, lembrou da célebre frase daquele pequeno garoto, filho de rei, que se orgulhava da rosa que cultivou:
Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas.

Perguntou-se por que as pessoas são tão levianas com os sentimentos dos outros, e até mesmo com os de si próprio; era tudo tão vazio e sem cor, não achava interessante e tinha certeza que não queria isso para si próprio. Ainda não tinha cultivado uma rosa para si.

Por fim, adormeceu.

Quimera

Para ele, era perfeita.

Achou ter descoberto a garota ideal para ele, ou talvez para muitos outros, mas de qualquer forma para ele também. Admirava os textos que ela redigia, mesmo com alguns erros de português e de concordância verbal, mas ele não parecia se importar muito com isso. Ele também cometia muitos desses deslizes com a língua.

Passou o último feriado pensando nela, em o que dizer, em o que fazer, de que forma falar. No final, não disse nada, muito menos fez alguma coisa. Torturava-se pela insegurança, pelo julgamento prévio que ela poderia fazer dele, e com freqüência se menosprezava. Mas ele sempre cultivou esses amores impossíveis. Impossíveis para ele, afirmava para os amigos, mas realmente gostava disso. Esse amor seria perfeito enquanto vivesse em seu imaginário, inspirador e sofrível. Expurgava de si tudo aquilo que desejava em outrem, toda uma construção de opiniões e vontades na garota que nunca chegou a conhecer realmente.

E isso o inspirava a escrever aqueles já manjados textos sentimentalistas que não agregam nada, mas de qualquer forma inspiração é inspiração. Precisava de alguma coisa o motivasse que não fosse o trabalho que odeia ou a falsidade das pessoas que conhece.

Este, assim como os outros que já cultivou, se extinguirá muito em breve. Mas ele não parecia se importar, só gostaria de sentir aquilo novamente. O fazia se sentir, de certa forma, mais vivo, vivendo aquilo que retrata Eça de Queiroz na obra Primo Basílio:

 “(...) entrava enfim numa existência superiormente interessante (...)”.